quarta-feira, 21 de março de 2012

Pode ser bom

       Sabe aquele dia em que já você acorda sabendo que algo dará errado, pisa primeiro com o pé esquerdo ao levantar da cama e tudo começa a conspirar contra você? Vivi um desses dias hoje.
       Rotineiramente às manhãs vou para a faculdade de ônibus, sentada e, obviamente, dormindo. Eis que a estranheza começa daí.
       Para minha surpresa o ônibus estava lotado e quando cheguei na faculdade, duas horas depois de um lindo trânsito, notei que não havia levado a carteira. Cansada, com sono, sem dinheiro.
       Hora do intervalo, hora da alegria! Vamos comer. E lá estava eu: cansada, com sono, sem dinheiro e com fome.
       Pedi uma graninha emprestada a um amigo (beijo, Rafa) e fui comer um pastel no China. Tropecei duas vezes na mesma escada, e olha que eu estava prestando atenção em cada degrau. Fui trabalhar!
       Cheguei à emissora e tive a primeira alegria do dia! Minha matéria estava no ar. Que orgulho! *-* Mas a fome começou a me perturbar novamente e lá estava eu. Cansada, com sono, sem dinheiro e com fome de novo. Fui embora, já que o que eu deveria ter levado para a emissora também esqueci em casa. Estava cansada, com sono, sem dinheiro, com fome de novo e bolada.
       No caminho até o ponto vi um mendigo implorando por alguma moeda a um funcionário da farmácia. O homem pedinte parecia exausto, fustigado pela vida, sem um tostão no bolso - nem bilhete único -, e ainda repetia várias vezes: "Estou há dois dias sem comer!!". 
       Lembrei na hora de Pollyana, obra de Eleanor Porter, que li recentemente. A personagem principal, nome do livro, jogava um tal de "Jogo do Contente". Consiste basicamente em pegar um fato ruim da sua vida e se contentar por não ser pior.
       Foi, apenas, o segundo momento alegre do meu dia. Eu joguei o jogo. 

Vamos brincar?

- Flávia Freitas
@flavialee

domingo, 18 de março de 2012

O invasor



Já no fim do século XIX, os escritores brasileiros faziam uso de traços tomados do cinema, o que, posteriormente, evoluiu. Em O invasor, de Marçal Aquino, há uma relação peculiar entre literatura e cinema, pois o roteiro do filme, lançado singularmente antes do livro, vem anexado à obra. O autor pretende assim valorizar o roteiro, caído no esquecimento e sentido provisório, havendo uma recepção diferente, que é estimulada pelo mercado editorial.
Essa obra de novo realismo rompe com a narrativa modernista, pensando agora o cotidiano. Assim, através de uma narrativa ficcional, em primeira pessoa, O invasor apresenta uma violência anunciada, ou seja, aludida. Fora de quadro, segundo o próprio autor, ela se torna mais tenebrosa, pois faz com que o leitor ou o espectador a imagine.
A estória, que se passa na periferia de São Paulo, traça um retrato do Brasil contemporâneo, onde a marginalidade e a violência são consequências da desigualdade social. Trata-se de um caso em que homens ricos contratam um pobre para matar um “amigo”. Sem ética, as classes sociais se igualam na narrativa, fazendo com que não haja bem ou mal. Todos são bandidos, embora sejam também vítimas do sistema social desigual.
O leitor ou espectador, através da hiperrealidade da literatura presente, sente que os valores estão corrompidos. Isso, portanto, nos faz refletir o futuro das relações e como elas podem se manter na contemporaneidade.

- Flávia Freitas Gomes

sábado, 3 de março de 2012

Segue a dica: A casa dos espíritos

Isabel Allende
Com doze edições internacionais, “A casa dos Espíritos”, lançado em 1982, é o primeiro bestseller internacional da escritora latino-americana Isabel Allende Llona. O romance transcendental retrata a geração de uma família em que os laços de amor e ódio são mais completos e duradouros que as situações políticas que os põem em desacordo.
Segundo o site da autora, Isabel já vendeu em média 60 milhões de livros dentre os 19 que já escreveu, e eles já foram traduzidos em 35 idiomas. Suas obras geralmente têm adaptações em teatro, cinema, rádio, ballet, musicais e óperas. O livro “A casa dos Espíritos”, por exemplo, recebeu uma adaptação no cinema, com um longametragem, dirigido por Billie August, lançado em 1993 nos Estados Unidos sob o nome de “The House of the Spirits”. Além disso, a obra foi adaptada também para o teatro, contando com 10 obras, divididas entre Porto Rico, Inglaterra, Israel, Chile e Estados Unidos, onde teve apenas aí seis peças.
Dentre suas obras, destacam-se, além de “La casa de los Espíritos”, “De Amor y de Sombra”, “Eva Luna”, “Cuentos de Eva Luna”, “Paula”, “Afrodita”, “Hija de la Fortuna”, “Trilogía juvenil” e “El Zorro”.
A escritora nasceu no dia 2 de agosto de 1942 e tem nacionalidade Chilena. É criadora da Fundação Isabel Allende, fundada em 1992, que visa ajudar mulheres e meninas, tanto no Chile, quanto internacionalmente.
Na época em que escreveu “A casa dos espíritos”, o Chile vivia uma ditadura militar que durou 17 anos. Filha de diplomata e sobrinha do então presidente do Chile, Salvador Allende, teve de se refugiar na Venezuela após a morte de seu tio e a imposição da ditadura. Aí escreveu o livro “A casa dos Espíritos”. Cria-se assim uma semelhança da vida da escritora com a história da obra, principalmente por seu tio ter morrido em um bombardeio ao palácio de La Moneda, bem semelhante à morte do presidente da ficção de Isabel. Além disso, ter sido influenciada pelo poeta chileno Pablo Neruda a deixar seu trabalho, como repórter, para escrever livros também é um traço parecido com os personagens “criados” pela escritora.
Na trama, Estebán Trueba, o patriarca da família, casa-se com Clara, da aristocrata família Del Valle. Embora Estebán quisesse ter se casado com a irmã de Clara, Rosa, não o fez, pois a jovem morreu com o veneno que era destinado a seu pai, Severo.
Estebán enriqueceu através da imposição do regime capitalista em Las Três Marías, terra miserável situada na zona rural deixada por seu pai. Violentava mulheres no campo, mas só reconheceu como filho o de Pancha García, ao qual deu seu nome: Estebán García.
Com o passar dos anos, Las Três Marías se tornou em uma terra fértil e dava muitos lucros a Estebán, que, desse modo, conseguiu reformar a casa da fazenda e construir um casarão, o Casarão da Esquina, na cidade. Assim, sua irmã, Férula, e sua esposa, Clara, morariam na mais luxuosa das casas da cidade.
Clara não ostentava o luxo do marido, muito pelo contrário. Todas as jóias que ele lhe dava, Clara esquecia em qualquer lugar da casa. Acabaram servindo de fonte de renda para sua filha Blanca, anos mais tarde.
Estebán e Clara tiveram três filhos: Blanca, Jaime e Nicolás. Blanca tivera um romance escondido com Pedro Terceiro García, que incitava os trabalhadores a uma rebelião contra o patrão, embora seus discursos marxistas não tivessem sucesso. Da relação proibida, nasceu Alba.
Jaime era um médico solteirão, que fazia de tudo pelos pobres e marginalizados, como sua mãe Clara. E Nicolás era o que mais envergonhava a família, embora causas sociais deixassem Estebán à flor da pele. Terminou sendo faquir, ensinando Alba, sua sobrinha, técnicas para não sentir dor, o que não lhe serviu no momento que mais precisava: nas torturas da ditadura militar. No fim das contas, Trueba enviou seu filho para o exterior sem passagem de volta, onde abriu um negócio próspero.
Estebán era um homem rude e, por isso, não aturava as manias da mulher de invocar espíritos e receber em sua casa gente que julgava estranha. Clara previa desastres, o que os ajudava a se proteger. Porém, Estebán, apesar de apaixonado por sua mulher, não tinha uma boa relação com Clara, o que o levava várias vezes a um prostíbulo da cidade. Em uma dessas idas, conheceu Tránsito Soto, uma prostituta que queria ter seu próprio negócio e ser rica.
Com o passar do tempo, e por influência de outros países, a ideia socialista se instalou nos trabalhadores, que começaram a reivindicar seus direitos. Alba, a neta de Trueba se envolvia em movimentos estudantis com Miguel, por quem se apaixonou. A ideia de ter uma adversária política dentro da própria casa incomodava Estebán, mas a neta era a coisa que mais amava. A consolidação de uma nova economia política se deu com a derrota da esquerda nas eleições presidenciais. Isso enfureceu a aristocracia, incluindo Estebán Trueba, que era Senador e estava muito abalado com a morte de sua mulher clarividente.
A economia se abalou, as pessoas faziam fila para comprar alimentos e coisas que nem necessitava, afinal, tinha-se muito dinheiro para pouca mercadoria. A reforma agrária se deu, tirando de vários proprietários suas terras. Em pouco tempo, a direita armou um golpe de estado, seguido da ditadura militar, dando assim o desfecho da narrativa.
Primeiramente, Estebán Trueba achava que a imposição de violência e outras técnicas das forças militares para com os civis fossem boas para “trazer de volta a ordem anterior”, mas depois se deu conta que havia ocorrido um golpe dentro do golpe. Todos os políticos anteriores não puderam assumir seus cargos, pois foram impedidos pelos militares.
Várias mortes aconteceram e outras tantas pessoas foram em fuga para o exterior, inclusive a filha de Trueba, Blanca, e seu companheiro Pedro Terceiro García. Alba, que ajudava fugitivos a se abrigarem em embaixadas, também foi pega pelos militares. Foi submetida à tortura pelo seu próprio irmão bastardo, Estebán García, que lhe invejava. Alba foi resgatada pela influência de Tránsito Soto, a prostituta que Estebán conhecera, mas que já havia enriquecido e formado seus contatos. Já Jaime não teve a mesma sorte. Morreu no início da ditadura por se negar a dizer na TV que o presidente de esquerda, muito seu amigo, havia cometido suicídio, quando, na verdade, tivera sido morto pelos militares.
Com o Golpe, as mercadorias voltaram aos mercados, embora as pessoas não tivessem dinheiro para comprá-las. Formavam-se filas de desempregados às portas das fábricas. Vendiam sua força de trabalho mais barata e assim os lucros dos proprietários aumentavam.
Estebán e Alba, sozinhos no Casarão da Esquina, começaram a escrever toda essa história, que foi ideia de Estebán, a partir dos “livros de escrever a vida” que Clara escreveu ao longo de sua vida. Os livros não eram organizados por ordem cronológica, mas sim por acontecimentos, e assim permitiu Alba e seu avô escreverem toda a narrativa.
Por isso, o narrador oscila tanto. Pois as partes do texto foram escritas por personagens diferentes e em alguns momentos, se estabelecia um narrador em terceira pessoa, o observador, que só relata os fatos, sem nada dar palpite. Podemos então pensar que autora tenha querido estabelecer uma relação de proximidade entre personagem e leitor. Afinal de contas, quando o próprio personagem narra a história, obriga o leitor a identificá-lo através de formas de falar e agir. Desse modo, incita o interesse do leitor.
“- Clara... – murmurei sem pensar e, então, senti que me caía uma lágrima pela face e logo outra, e outra mais, até que foi uma torrente de pranto...” (narrado por Estebán, p. 332)
“Ontem à noite morreu meu avô. Não morreu como um cão, como receava, mas calmamente em meus braços, confundindo-me com Clara e, às vezes, com Rosa, ...” (narrado por Alba, p.437)
“O terremoto marcou uma mudança tão importante na vida da família Trueba, que a partir de então eles passaram a localizar os acontecimentos antes e depois dessa data.” (narrado em 3ª pessoa p.174)
Em nenhum momento o narrador, seja ele em 1ª ou 3ª pessoa, cita o país em que a narrativa acontece. Apenas deixa claro que a nação faz parte da América Latina e que os personagens principais, a família Trueba, se deslocam constantemente entre campo, em Las Três Marías, e cidade, onde havia o Casarão da Esquina.
Podemos perceber que há na narrativa, personagens planos; que são aqueles previsíveis e por isso mais fáceis de identificar; e os redondos; aqueles que sofrem mudanças, que são complexos e apresentam atitudes imprevisíveis. Estebán Trueba, por exemplo, é um personagem de fácil identificação, pois qualquer atitude é regida pela raiva, bem como a forma de falar é rústica. Sendo assim, Estebán é o que chamamos de personagem plano. Já Clara, sua mulher, é o que definimos personagem redondo, pois qualquer ação sua é imprevisível. Às vezes, devido aos acontecimentos, ficava muda durante anos, outras vezes sua reação era ficar distraída, por exemplo.
Isabel Allende vivia no período da pós-modernidade, em que havia uma grande dificuldade em discernir o que é real e ficção devido à convergência midiática. Por isso, na obra é impossível saber se a narrativa é real ou ficcional. A realidade desse período da história Chilena é tão dura que é preciso fugir da realidade, e por isso a escritora se vale do realismo fantástico, escola literária de estilo típico latino-americano, surgida no início do século XX. “A casa dos Espíritos” apresenta verossimilhança, já característica do realismo épico, com o contexto vivido na época, em que Augusto Pinochet deu à America Latina uma das mais sangrentas ditaduras da história.

 Então, segue a dica de uma belíssima obra para nós, fãs da leitura!

Beijo e até a próxima!









FONTES DE PESQUISA:
ALLENDE, Isabel. “A casa dos Espíritos”, Ed. Bertrand Brasil. 41ª Ed. Rio de Janeiro, 2010.